Quatro Artistas Exploram Corpo e Movimento em exposição na GAL

A GAL – Galeria de Arte Contemporânea apresenta Pulsão, uma exposição coletiva com curadoria de Paula Plee, fundadora da Piscina – Plataforma para mulheres artistas. A mostra reúne obras de Flávia Ventura, Carolina Botura, Giulia Puntel e Thany Sanches, quatro artistas contemporâneas que exploram o corpo e suas pulsões através de abordagens distintas. As relações entre corpo e matéria, vida e morte, movimento e interações entre corpos são refletidas em trabalhos que revelam a intensidade e complexidade da experiência humana, criando um diálogo profundo sobre as forças que nos movem.

Pulsão
substantivo feminino

Impulso.
[Psicanálise] Força no limite do orgânico e do psíquico que impele o indivíduo a cumprir uma ação com o fim de resolver uma tensão vinda do seu próprio organismo por meio de um objeto, e cujo protótipo é a pulsão sexual.

Embora o título escolhido para esta mostra possa carregar consigo uma série de pré-concepções psicanalíticas, não busco aqui me ater a teorias de Freud ou Lacan. Não ousaria fazê-lo. Primeiro, porque esta temática está longe de meu domínio e, em segundo lugar, me interessa a pulsão (e o desejo) entendida enquanto força motivadora e impulsionadora comum a todos nós dentro da experiência humana, mesmo que acessada através de diferentes formas e consciências.

Busco assim, aproximar os trabalhos de quatro artistas que, através de abordagens distintas, podem nos levar a refletir sobre as relações entre corpo e matéria, entre vida e morte, entre corpo e movimento ou de corpos entre si, passando pela pulsão de criação presente no fazer de Carolina Botura (1982), Flávia Ventura (1991), Giulia Puntel (1992) e Thany Sanches (1986).

O processo de pensar esta exposição se iniciou a partir do trabalho de Flávia Ventura. No começo de sua trajetória, a artista tinha como foco de sua pesquisa o movimento. Através de performances em parceria com o amigo e dançarino Ítalo Augusto, ela fazia registros do movimento do corpo no espaço urbano. Ironicamente, durante a pandemia, seu corpo se viu paralisado e quase adormecido. Foi uma experiência corporal inesperada (e orgástica) que o retirou desse estado de dormência.

A sexualidade e, principalmente, o orgasmo feminino, passaram a ser sua temática principal. E foi ao pensar o corpo da mulher que a artista chegou à pornografia, que foi assimilada e relida em suas pinturas. Que leituras sobre os corpos seriam possíveis ao retirar o corpo masculino de cena? Com densas camadas de tinta em tonalidades terrosas ou que se assemelham a tons de pele, as pinturas de Flávia Ventura nos apresentam um jogo em que explícito e implícito se misturam. Não é de pronto que se enxerga corpos ou algum cunho sexual nas imagens retratadas.

Em trabalhos mais recentes, Flávia passa a refletir sobre as vulnerabilidades masculinas. É a abertura do homem que interessa à artista. Foi também a partir desse interesse que a artista desenvolveu a série de esculturas em cerâmica fria, que ela chama de “Polvos”, seres híbridos carregados de possibilidades de penetração e trocas. Muito explorados na pornografia, em especial nos hentais – como são conhecidos quadrinhos e animes pornôs, famosos pelas representações sexuais envolvendo criaturas com tentáculos, feras, monstros, robôs, alienígenas, etc. –, os polvos podem ser lidos nesses trabalhos como uma metáfora do homem.

O prazer em manipular a matéria foi uma das motivações que a conduziram a iniciar essas esculturas, aspecto que também a impulsionou para seus experimentos recentes com encáustica. De natureza ainda mais abstrata que suas pinturas, esses trabalhos não partem de referenciais da pornografia. O trabalho se dá em uma relação de trocas com a fisicalidade do material, como se a artista estivesse de fato transando com ele. Com seu foco voltado para o prazer decorrente da produção, e a relação erótica estando em um lugar mais fluido e menos planejado, os corpos acabam surgindo como consequência. Nas palavras da própria artista, “de alguma forma, como estou muito acostumada a desenhar o corpo, é como se a mão desenhasse sozinha.”

Assim como Flávia, Thany Sanches parte da pornografia para criar suas pinturas. Embora sua pesquisa esteja baseada na pornografia binária e heterossexual – construída para o que se supõe ser o olhar masculino –, a artista não está interessada apenas em representar corpos como eles são. Ela se interessa pelas infinitas possibilidades dos corpos em movimento.

Sanches, que adentrou o universo do camming – prática online de usar uma câmera de vídeo (cam) para interações quase sempre de cunho sexual – para a realização de desenhos de modelo vivo, acabou também por ter a experiência como cam girl, ou seja, esteve dos dois lados da câmera, observando e sendo observada.

Além do interesse em comum por corpos em movimento, a vulnerabilidade através do olhar é outro ponto de contato entre os trabalhos das artistas. Na exposição estão quatro desenhos de uma série recente do que Thany chama de “autorretratos” – desenhos desenvolvidos pela artista após ser acometida por uma cegueira parcial. A partir dessa experiência, a artista desenhou criaturas que possuem olhos em todos os lugares. “Tudo é olho, tudo vê e tudo sente”, conta.

Assim, ao mesmo tempo em que seus trabalhos podem derivar da pornografia, podem ser também notações do que a artista vê e experiencia em seu dia a dia, “são pinturas de anotações, minutos da vida que quis guardar”. A espécie de criatura bipartida e fragmentada que vemos na pintura Zones of Resplendence (2023), por exemplo, foi inspirada pela performance de mesmo título da artista Carolina Mendonça, baseada em Bruxelas, e que a impactou profundamente.

Thany conta que parte de suas pinturas são de “imagens que vão ficando na vontade, pedindo para pintar”. Essa pulsão que tira da inércia e impele à criação, é algo inerente à ação de fazer, de realizar e trazer para a vida algo que está latente mas que ainda não existe, algo que pode ser visto na prática de todas as artistas reunidas na mostra.

Giulia Puntel, por exemplo, passou por um período de bloqueio, que coincidiu com a gestação de seu filho e com a pandemia. Após o nascimento da criança, era como se seu corpo “estivesse pedindo” para criar, conta a artista. Uma das primeiras coisas que fez no ateliê após esse período foi observar diferentes elementos no microscópio. Ver de perto as texturas e características dos materiais a fizeram pensar sobre como a matéria é algo que pode ser vista de muitas formas. Para a artista, há várias maneiras de ver e consumir imagens, e a possibilidade de olhar para as coisas sem atrelar a elas significados, é algo novo e libertador.

Suas pinturas, que num primeiro momento eram essencialmente bidimensionais, encontraram um novo rumo ao incorporar outros materiais e hoje a execução é mais intensa e física. Sua pesquisa se voltou para a abstração resultante da junção de fragmentos de tecidos e outros materiais que ditam as potencialidades do trabalho a partir de suas características físicas.

Os trabalhos adquiriram também uma certa tridimensionalidade e tornaram-se menos mentais, passaram a resultar mais dos movimentos do corpo e das relações que ele tece com outras matérias a partir de um lugar de subjetividade menos racional. É o corpo que deseja e cria a partir desse impulso e da observação do trabalho. Durante o processo de criação, a artista opta pelo desapego das certezas que os significados podem trazer e pode assim, compreender para onde o trabalho a conduzirá.

Sua produção recente passou a revelar linhas, muitas delas remetendo a espacialidades e que surgem de marcações pré-existentes dos próprios tecidos que a artista usa como suporte. Na obra inédita presente na mostra, podemos ver linhas retas que se contrapõem a outras que seguem um movimento espiralar. A estas, são sobrepostos pequenos elementos de látex, resultantes do próprio processo de fatura do trabalho.

As abstrações derivadas da relação entre macro e micro também estão presentes na prática de Carolina Botura. Em diferentes séries ao longo de sua trajetória, a aproximação e o afastamento das imagens se misturam a referências e elementos caóticos da cultura contemporânea e pop que emergem e se diluem em suas pinturas.

No trabalho que se relaciona de maneira mais formal e direta com a obra de Giulia, vemos linhas verticais sobre uma espessa camada de tinta, em uma abstração que representa o interior do corpo em um nível microscópico, ao passo que nos demais trabalhos presentes na mostra, vemos representados corpos que se colocam junto e dentro da paisagem, quase como uma celebração do corpo feminino e da natureza.

Há mais de uma década, o impulso de criar imagens naturais e novas possibilidades de natureza esteve presente na prática de Carolina Botura. Formas que se assemelham a organismos ou a fragmentos de órgãos, feitos ora com cerâmica, ora com plantas e elementos naturais encontrados, nos convidam a pensar no ciclo natural e infinito a que estamos todos sujeitos, de nascer para morrer. Interessa à artista esse movimento de impermanência da matéria.

Em um dado momento de sua pesquisa em pintura, corpos e outros elementos passaram a “fusionar” com elementos da natureza como plantas, caules e troncos de árvores. Os trabalhos inéditos de Carolina reunidos nesta mostra trazem uma nova abordagem cromática sobre essa temática. Se antes a artista pintava em tonalidades mais vibrantes e contrastantes, nos novos trabalhos, os corpos femininos que se fusionam à vegetação e a outros corpos em um gozo conectado à natureza, passam a ser representados em tons mais terrosos. A artista conta que essa mudança se deu após uma experiência meditativa, e que, ao abrir os olhos, sentiu algo diferente. Ao retornar ao ateliê, teve claro para si que as novas pinturas teriam tonalidades diferentes das que vinham sendo utilizadas até ali.

Ao ouvir cada uma das artistas na preparação desta exposição, foi interessante notar como as vivências pessoais e sensoriais em diversos âmbitos, são propulsoras da ação, das mudanças de rota, do desejo que tira da inércia, do impulso irremediável de criar – e como essa pulsão não pode ser racionalizada ou explicada apenas em palavras. A linguagem falada, escrita e racionalizada não pode dar conta do que só a ação que deriva das pulsões do corpo pode exprimir.

 

CURADORIA E TEXTO: PAULA PLEE

 

Pulsão

Local: GAL – Rua Groenlândia, 50 – Sion

A exposição fica em cartaz até 28/09

Horário de visitação:

terça a sexta-feira: 14h – 18h30 /

sábado 10h – 14h

visitas em outros horários disponíveis sob agendamento

tel/ whatsapp: 31 9370-8998

Gratuito

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