“Você samba de que lado, de que lado você samba/ De que lado você vai sambar?”, perguntou, certa vez, o cantor e compositor Chico Science
em Samba do Lado, faixa do disco Afrociberdelia (1996). Pois Lucas Mamede, pernambucano como Chico, diria: “Todos”. O cantor e compositor de 21 anos
está lançando Mar dos Desejos, onde explora as diversas sonoridades do gênero musical brasileiro.
Mar dos Desejos tem produção do violonista e arranjador Rafael dos Anjos, que traz no currículo trabalhos ao lado de, entre outros, os cantores
e compositores Arlindo Cruz e Diogo Nogueira. É o novo trabalho autoral de Lucas Mamede, que assina sete das nove composições – as únicas exceções
são Abraço Casa, de Ana Caetano, e Amanhã Talvez, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, que obviamente foram transformadas em samba. Este, aliás, é
um dos muitos méritos da produção de Rafael: adaptar para a linguagem de Cartola e Nelson Cavaquinho canções que tiveram como ponto de partida
gêneros como o ijexá, a bossa nova e a balada romântica.
As mutações operadas por Dos Anjos foram trabalhosas, porém prazerosas. Para que isso acontecesse, ele recrutou alguns dos
instrumentistas mais respeitados do mercado musical. Um deles foi Rildo Hora, gaitista e produtor de alguns dos discos mais históricos do samba –entre
eles, vários de Zeca Pagodinho e Beth Carvalho. Rildo elabora um diálogo com a voz de Lucas Mamede na faixa de abertura, Já faz um Tempo, que
nasceu como uma MPB mais, digamos, tradicional para se tornar um sambão estilo anos 1970. O trompetista Jessé Sadoc, por seu turno, brilha em
Paraíso, que ganhou uma levada típica de Seu Jorge e de seu antigo grupo, Farofa Carioca. “O trompete do Jessé foi inspirado pelo Roy Hargrove,
instrumentista americano que tinha projetos de jazz e música pop”, explica Rafael. O flautista Eduardo Neves é outra participação estrelada –ele está em
Mar dos Desejos. A música traz influências de autores da MPB como Djavan e Lenine, e foi aos poucos transportada para o universo do samba. “É a mais
diferente do disco, talvez por trazer uma levada de ijexá”, diz o produtor, referindo-se ao ritmo afro-baiano.
Dentre as mais diferentes linguagens do samba, destaca-se o samba rock e o sambasoul. Ele se faz presente em Santo Cupido, que emula a
sonoridade de Jorge Ben Jor dos anos 1970 e, principalmente, os arranjos do maestro Arthur Verocai, que misturava naipes de cordas com sopros em
discos como Negro é Lindo, que o cantor, violonista e guitarrista carioca lançou em 1971. Abraço Casa, de Ana Caetano, era a composição que mais tarde,
com novos contornos, seria conhecida pelo nome de Trevo –presente no disco de estreia de Anavitória. Ela se tornou um saboroso samba inspirado no
Recôncavo Baiano (região do violonista Roberto Mendes, uma autoridade da música local). Já Passatempo é, na visão de Rafael, “o respiro do disco”, uma
balada samba pop de alta patente. Por fim, Sua Chuva é um partido alto. Mas também foi acrescida de um instrumento pouco afeito às rodas de samba.
Nesse caso, um acordeão.
Em Mar dos Desejos, Lucas Mamede, um jovem de 21 anos, estreita seus laços com o gênero que marcou presença em duas faixas de Já Ouviu
Falar de Amor, seu álbum de estreia, que teve a produção de Alê Siqueira (o mesmo dos Tribalistas e de Mateus Aleluia). O samba, aliás, se faz presente
na capa do trabalho, que tem como inspiração as capas de discos de sambistas históricos como Agepê e Bebeto. Um trabalho corajoso e maduro de um
artista cuja história na MPB ainda está para ganhar novos e vibrantes capítulos. E de volta a Chico Science, “mas escuto o samba.”
Fotografia: @marcoshermes-1