Por Thiago Lenine
Passando os olhos no noticiário diário, como faço cotidianamente, me deparei com a seguinte manchete: “Mulher negra pede indenização a editora e autora de livro antirracista e acaba condenada em R$ 10 mil”.
Para um historiador negro e brasileiro, tal chamada é sempre uma oportunidade para reflexões, trabalhos em sala de aula, pesquisas e afins. Além disso, a notícia envolvia a imagem da antropóloga, historiadora e imortal (pela ABL) Lilia Moritz Schwarcz e, também, estampava a capa de um de seus livros, “Nem preto, nem branco, muito pelo contrário” (Claro Enigma, 2013).
A autora já é referência reconhecida, não sendo necessárias maiores apresentações.
Como historiador da cultura intelectual brasileira, me interesso em como as pessoas negras são tomadas como objetos pelos intelectuais brancos. Nem sempre formulei as coisas assim com essa clareza. Hoje, sim, o faço. E quando digo “objetos”, me refiro tanto ao sentido teoricamente “neutro”, como pretendem os cientistas sociais, ou seja, “objeto de pesquisa”, quanto à noção cara à história brasileira de objeto mesmo. De coisa. Da maneira como o escravizado era juridicamente uma “coisa”, ainda que pudesse ter representação no judiciário (por um terceiro) e uma série de outras situações que, obviamente, “desmentia” essa condição jurídica.
Daí essa noção de coisa vivente, o trato dos viventes, o negócio da escravidão, o escravo- objeto-vivente, no fio do chicote da ternura e do estupro, da amizade e do castigo, da cozinha para a sala. Coisa quando conveniente, gente quando conveniente também. Isso é escravidão e não há agência escrava que modificará isso na historiografia. O regime escravista brasileiro não era um mercado livre de oportunidades em que, a partir da capacidade de cada um, se poderia ou não obter o “sucesso” segundo e seguindo regras claras, bem definidas e “racionalmente” delimitadas. Esse “weberianismo” para colônia e império mais confunde do que explica. Mas este texto não é sobre isso ou parece que não deva ser.
Não por acaso, nessa mesma historiografia, os lugares onde mais encontramos as possíveis “vozes” dos escravizados – pois “falavam” por eles os seus representantes nos autos – são os processos judiciais.
E cá estamos com um processo judicial em que uma pessoa negra procura seus direitos já, obviamente, no estado democrático reestabelecido na Nova República.
Basicamente a pessoa reivindica os direitos de uso de sua imagem na capa de um livro. Ela quer receber por isso.
O que podemos concluir com uma pesquisa rápida, é que a historiadora não se preocupou com essa imagem que estampa a capa de seu livro. Se não, vejamos.
No livro de Schwarcz, a foto da capa está creditada o fundo documental do extinto jornal “Última Hora” abrigado no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Apenas isso.
A partir dos dados aparecidos agora na imprensa, já sabemos que a solicitante ao direito de imagem é Nicea Fonseca Pereira.
Rapidamente, verificamos que o nome de Nicea aparece como ganhadora de um prêmio de natal promovido pelo “Última Hora” em novembro de 1963. Ele está entre o das ganhadoras e ganhadores que diariamente tinham seus nomes estampados nas páginas finais do jornal.
Ao anunciar os nomes, e o de Nicea aparece por duas vezes, avisa-se aos ganhadores a necessidade de entrarem em contato com o “Departamento de Promoções de UH, rua Sotero dos Reis, 62, telefone 34-8080 (ramal 5)” (Ultima Hora, 11 nov 1963, p. 10). Posteriormente, exibia-se a foto dos vencedores com os brinquedos presenteados.
O brinquedo que Nicea ganhara, como várias outras crianças meninas, foi a “Boneca Beijoca” e o seu registro trazia a seguinte legenda: “Nicea Fonseca Pereira (Avenida Paulista [ironia!], 179, Duque de Caxias, Estado do Rio) ficou muito compenetrada o lado da boneca ‘Beijoca’ que ganhou quando se deixou fotografar no momento em que recebia seu prêmio, no departamento de promoções de UH” (Última Hora, 28 nov 1963, p. 7). Ou seja, a imagem tinha nome e endereço, por assim dizer.
Uma das maiores questões e dilemas de quem trabalha com imagens de pessoas negras, escravizadas ou não, ao longo da história é justamente a do anonimato. É clássica a frase de Malcom X que afirma ter optado por colocar um “X” no seu sobrenome porque ele não sabia qual era o seu sobrenome africano. Sabia apenas aquele que os brancos lhe impuseram e, este, ele não queria e nele não se reconhecia. A incógnita do passado, a falta do nome do avô, do bisavô, dos sobrenomes que se orgulham de sua secularidade, como os Holanda, Schwarcz, Magnoli e afins, marca a identidade negra americana.
Assim, quando nos vemos envoltos nas pinturas, fotografias e registros imagéticos de negros e negras ao longo da história, é recorrente a expressão desta angústia, inclusive em exposições das quais a própria autora já foi curadora nos lugares mais “gabaritados” da cultura intelectual brasileira. Falta o contexto, falta o nome, falta o registro mais ou menos completo e preciso. Abre-se espaço para a conjecturas as mais variáveis possíveis, para a imaginação de quem manipula a imagem negra. Reproduz-se sempre o “negro”, genérico, anônimo, como nos livros didáticos e festejos de abolição estilo lei Áurea.
Não era o caso aqui.
Créditos na imagem: Nicea Fonseca Pereira e boneca “beijoca”, Ultima Hora, 28 nov. 1963 p. 7, acervo BN digital.